Blogs

quinta-feira, 21 de maio de 2020

A domesticação da harpa - lenda taoísta


 
Enviado por Tiago Novaes

 

 

 

 

Hoje, quero passar a palavra a um livro de mais de cem anos, chamado O livro do chá, do autor japonês Kakuzo Okakura. A ambição tem modos cruéis de aniquilar o talento, e dentre muitas outras alusões, o trecho trata disso.

Você conhece a lenda taoísta
“A domesticação da harpa”?

Há muitos, muitos anos, erguia-se na ravina de Lungmen uma imponente árvore kiri, verdadeira rainha da floresta. A árvore erguia a cabeça para falar com as estrelas, e as espirais bronzeadas de suas raízes profundamente cravadas na terra misturavam-se às do dragão prateado que dormia mais abaixo. Um dia, um poderoso mago fez dessa árvore uma maravilhosa harpa, cujo espírito rebelde só seria domado pelo melhor dos músicos. Por muito tempo, o instrumento foi conservado como um tesouro pelo imperador da China, mas foram vãos todos os esforços dos que sucessivamente tentaram extrair uma melodia de suas cordas. Em resposta aos mais ingentes esforços, da harpa vinham apenas ásperas notas de desprezo que destoavam das canções que os músicos cantariam com tanto prazer. A harpa recusava-se a reconhecer seu mestre.
 
Por fim surgiu Peiwoh, o príncipe dos harpistas. Com mãos carinhosas, acariciou a harpa como quem acalma um cavalo selvagem, e suavemente tangeu suas cordas. Cantou a natureza e as estações do ano, as soberbas montanhas e as quedas d’água, e todas as lembranças da árvore despertaram! Uma vez mais, o doce hálito da primavera brincou em seus galhos. As jovens cataratas dançaram ravina abaixo e riram para as flores em botão. Logo, sonhadoras vozes de verão se fizeram ouvir na miríade de insetos, no suave gotejar da chuva, no lamacento do cuco. Ouçam! O tigre ruge – e o vale responde. É outono; na noite deserta, a lua, cortante como uma espada, brilha sobre a relva coberta de gelo. Agora, reina o inverno e, no ar repleto de neve, giram cisnes em revoada e o granizo estrondeia sobre a ramagem com feroz prazer.
 
Então, Peiwoh mudou de tom e cantou o amor. A floresta se agitou como um amante perdido em ardentes pensamentos. No alto, uma nuvem correu brilhante e clara como uma altiva donzela; mas, ao passar, arrastou sobre o solo extensas sombras, negras como o desespero. O tom mudou outra vez; Peiwoh cantou a guerra, o entrechocar do aço e o tropel de corcéis. E na harpa despertou a tempestade de Lungmen, o dragão cavalgou o relâmpago, a avalanche rolou montanha abaixo estrondeando. Em êxtase, o monarca chinês perguntou a Peiwoh qual era o segredo de sua vitória. “Senhor,” respondeu este, “os outros falharam porque cantaram somente a si próprios. Eu deixei que a harpa escolhesse o tema, e não sei direito se a harpa era Peiwoh, ou Peiwoh, a harpa.”
 
Essa história ilustra muito bem o mistério da apreciação artística. A obra-prima é uma sinfonia tocada em nossos mais requintados sentimentos. A verdadeira arte é Peiwoh, e nós somos a harpa de Lungmen. Ao toque mágico do belo, as cordas secretas do nosso ser são despertadas, e nós vibramos e nos excitamos em resposta ao chamado. Mente fala à mente. Ouvimos o que não foi dito, contemplamos o invisível. O mestre desperta notas que desconhecemos. Lembranças há muito esquecidas retornam com um novo significado. Esperanças sufocadas pelo medo, desejos que não ousamos reconhecer apresentam-se revestidos de nova glória. Nossa mente ´uma tela sobre a qual artistas espalham as cores; os pigmentos são nossas emoções: o claro-escuro, a luz da alegria e a sombra da tristeza. A obra-prima é tão nossa quanto nós somos da obra-prima.
 
[…] O que nos atrai é muito mais a alma que a mão, o homem que a técnica – e quanto mais humano for o apelo, mais profunda será nossa resposta. É por causa deste secreto entendimento entre o mestre e nós mesmos que sofremos e nos regozijamos com o herói ou a heroína da poesia ou do romance. Chikamatsu, o Shakespeare japonês, estabeleceu como um dos princípios primordiais da composição dramática a importância de o autor ganhar a confiança do público. Diversos de seus discípulos submeteram peças à sua aprovação, mas apenas uma lhe agradou. A peça apresentava semelhança com A comédia dos erros, na qual irmãos gêmeos sofrem em decorrência de erros de identidade. “Isto”, disse Chikamatsu, “tem o espírito apropriado do drama, pois leva o público em consideração. Ao público é permitido saber mais que os atores. O público sabe onde está o erro, e tem pena dos pobre personagens no palco, que, inocentes, correm ao encontro do seu destino.”
 
Os grandes mestres, tanto do Ocidente quanto do Oriente, nunca esqueceram o valor da sugestão como meio de estabelecer relação de cumplicidade com o espectador. Quem é capaz de contemplar uma obra-prima sem se maravilhar com a imensidão de pensamentos que se apresenta à nossa consideração? Como são íntimas e compreensivas todas elas; e como são frias, em contraste, as banalidades modernas! Nas primeiras, somos capazes de sentir a cálida efusão de um coração humano; nas últimas, apenas uma saudação formal. Absorto em sua própria técnica, o moderno raramente se eleva acima de si mesmo. Como os músicos que em vão invocaram a harpa de Lungmen, ele canta apenas a si. Seus trabalhos podem estar mais próximos da ciência, mas se distanciam da humanidade. No Japão, temos um velho ditado que diz: uma mulher não consegue amar um homem realmente vão, pois no coração deste não há brechas por onde o amor possa penetrar e preencher. Nas artes, a vaidade, tanto da parte do artista quanto do público, é igualmente fatal para a compreensão.
 
(O livro do chá está publicado pela Estação Liberdade. E a tradução é de Leiko Gotoda.)
 
 



 

Nenhum comentário: